É cedo para se compreender o
legado de Michelle. Certo é que venceu a resistência inicial e hoje é
mais popular que o presidente. Se inicialmente as suas declarações sobre
questões raciais causaram polémica e fizeram dela o alvo de epítetos
como 'a metade amarga de Barack', a primeira-dama negra acabou por
dominar o jogo político, esse que em tempos reconheceu ser sujo. Acabou
por dar uma volta completa na sua imagem e tornou-se o rochedo da
família Obama Preta ou negra? Que diz a etiqueta sobre isto? Para o bem e
para o mal, Michelle Obama sempre teve de provar que estava à altura.
Não bastou ser brilhante; quanto mais longe foi, mais escura a sua pele.
Noutros momentos, o problema era o inverso: talvez não fosse
suficientemente negra (ou será afro-americana?).
Desde
a infância, teve de equilibrar o optimismo que lhe dizia que não só
pela sua excelente educação, mas por ser realmente educada, tinha o
caminho aberto, ao passo que a experiência lhe dizia que, muitas vezes, a
cor da pele falava mais alto, normalmente em seu detrimento. Nos
círculos em que se destacava, quem ficava em segundo atrás dela eram
quase sempre brancos, e essa diferença que, subtil ou descaradamente, se
enquistava nunca a deixou totalmente à vontade num mundo de brancos.
Não estamos a falar dos queques que fazem os seus cursos na Católica e
redondezas, repetindo o ciclo de vida privilegiado dos pais, mas de uma
verdadeira elite que não vê limites para as suas aspirações, ambições ou
ganância. Antes de se diplomar na Faculdade de Direito de Harvard,
Michelle frequentou Princeton.
No
primeiro ano nesta universidade, a mãe da sua colega de quarto (branca)
exigiu que a filha fosse transferida.'Eu disse-lhes que não estávamos
habituados a viver com negros', justifica a senhora, citada por Peter
Slevin, autor da nova biografia da primeira-dama norte-americana,
'Michelle Obama: Uma Vida'.O momento em que o mundo, pela primeira vez,
deixou a sua atenção prender-se nela não está em linha com as suas
aparições mais recentes, como o vídeo que se tornou viral nas redes
sociais, com ela em palco a dançar a favor de uma campanha que lançou há
uns anos contra a obesidade infantil, mas numa frase incisiva e dura
que proferiu durante a campanha presidencial de 2008, que levaria o
casal Obama à Casa Branca. 'Pela primeira vez na minha vida adulta,
estou orgulhosa do meu país', fez saber, e de imediato se viu alvo de
uma campanha que contou com a bateria dos comentadores do canal Fox
News, vários colunistas conservadores e até a mulher do candidato
presidencial republicano, John McCain.
Se
a antiga advogada que subiu a pulso no mundo corporativo – tendo sido
mentora de Barack no escritório em que os dois se conheceram – não ia
deixar-se pisar pela máquina trituradora da oposição, nunca é fácil para
a mulher de um político ser puxada para o ciclo noticioso, e Michelle
parecia ter tropeçado, revelando o calcanhar de Aquiles do marido.
Peter
Slevin garante, no entanto, que o comentário não foi um erro de
percurso; pelo contrário, foram palavras que escreveu e usou em dois
discursos durante a campanha. E não o fez contra o conselho da equipa de
assessores do marido. Ninguém da campanha estava preocupado ou imaginou
que as suas palavras pudessem criar tamanho alvoroço. Apesar do seu
optimismo, por essa altura Michelle tinha grandes dúvidas de que a
maioria branca estivesse preparada para eleger um presidente negro.
Mesmo depois da vitória histórica, manteve as suas dúvidas em relação ao
resultado e, em certa ocasião, chegou a dizer que vivia 'num país onde
se supõe que eu não deveria estar aqui'. Slevin revela não apenas que
Barack teve dificuldade em convencer a mulher de que valia a pena fazer a
família passar pelas atribulações de uma campanha presidencial, mas que
ela chegou a dizer-lhe: 'Este caminho não é nobre.' O biógrafo adianta
que Michelle teve 'poder de veto' sobre a candidatura do marido, e que
Barack não conseguiu convencê-la sozinho, vendo-se obrigado a pedir
ajuda ao sogro, Craig Robinson. No fim, e segundo as palavras da
primeira-dama, 'era algo que, se não fizéssemos, Barack iria passar o
resto da vida a questionar-se sobre o que teria acontecido se se tivesse
candidatado'.
De então para
cá, alguns analistas têm referido que algo do fogo combativo de Michelle
se perdeu. As suas prioridades adaptaram-se quando pôs de lado os seus
planos enquanto profissional empenhada numa carreira brilhante, alguém
que não hesitava em denunciar as tão actuais desigualdades que continuam
a fazer os negros sentirem-se cidadãos de segunda categoria, para
encarnar o papel da carinhosa mãe de todos os americanos. Na altura em
que Barack corria por um lugar no Senado, quando os críticos
questionaram o seu verdadeiro empenho para com os afro-americanos, foi
ela quem garantiu que nunca se tinha esquecido daquilo que ao longo das
suas vidas sempre lhes foi lembrado. 'Mais negra que eu não há', disse
em entrevista a uma televisão de Chicago. 'Nasci no South Side. E venho
de uma família evidentemente negra... Carrego a minha negritude à frente
como o fará qualquer outro negro neste estado, ok?, e Barack é um homem
negro.'
Esta atitude
assumida e que não se engalinhava em mesuras fez dela, em 2008, um teste
para a consideração do país relativamente não só aos negros, mas às
mulheres negras. O seu compromisso não era com as pessoas da sua cor,
mas com as pessoas que sofreram como ela. Durante a campanha falou num
dos problemas mais sensíveis entre a comunidade negra dos EUA, a elevada
taxa de mortalidade das mulheres, mães para quem 'o sonho de oferecer
um futuro melhor aos filhos se escapa por entre os dedos'. Esta atitude
teve um preço. Foi rotulada de a 'metade amarga de Barack' (um
trocadilho com better half / bitter half) e 'Sra. Queixosa'.
Dizer
que ao longo destes anos Michelle saiu por cima, que não se deixou
abater, não equivale a dizer que o seu forte instinto de justiça tenha
prevalecido. É evidente o esforço que fez para estar firmemente ao lado
de Barack e assegurar a retaguarda, como prova o sucesso da
transformação da sua imagem, com uma plataforma desenhada em torno dos
tradicionais valores familiares que tão bem caem entre a classe média
que colonizou os subúrbios norte-americanos.Os números são
suficientemente expressivos, e a taxa de aprovação de Michelle
colocava-a, há alguns meses, cerca de 20 pontos acima de Barack – 66%
contra 44%. Quem não deixou de notar este aspecto foi Hillary Clinton
que, numa das suas primeiras contratações para a campanha às
presidenciais em 2016, recrutou Kristina Schake, a consultora de
comunicação a quem são atribuídos os créditos por ter encorajado a
primeira-dama a abandonar o pudor e entrar no jogo circense da política.
Isto significou uma série
de golpes publicitários, desde visitas a grandes superfícies comerciais
onde fez compras à paisana ao lado das 'pessoas comuns' até aparições em
talk-shows nocturnos onde se mostrou espirituosa, divertida,
inteligente, mas down to earth (de pés assentes na terra) – uma
qualidade cada vez mais apreciada pelo eleitorado.
Dois
meses após os Obama se terem mudado para a Casa Branca, Michelle
deixou-se fotografar para a capa da revista 'Vogue', que anunciou que
era ela a primeira-dama que há muito 'o mundo aguardava'. De facto, era
uma entre apenas três que tinham formação superior – as outras duas são
Hillary e Laura Bush. Mas as suas conquistas profissionais logo caíram
para um plano muito secundário face ao que realmente fez correr tinta:
as suas inusuais e até arriscadas escolhas a nível de guarda-roupa. As
origens humildes, os anos de formação que viveu em total dedicação aos
estudos num apartamento de um só quarto, que dividia com o irmão, em
Chicago, todas as dificuldades por que passou, servem de ilustração
perfeita à velha narrativa de que, com trabalho árduo, é sempre possível
nos EUA uma pessoa transcender a sua classe, género e raça, e ir tão
longe quanto possa sonhar. Anos mais tarde, Michelle e Barack compraram
uma mansão num bairro de Hyde Park onde, anos antes, a sua avó materna
tinha feito faxina para as abastadas famílias brancas.
Avançando
mais uns anos, os dois faziam história tornando-se o primeiro casal
negro a fazer da Casa Branca a sua casa.A mulher que na disciplina de
Sociologia em Princeton assinou uma longa dissertação sobre os negros
que passaram por aquela universidade e a forma como progrediram e se
adaptaram, tornando-se mais ou menos confortáveis nas suas interacções
com outros negros e brancos, e a sua motivação para beneficiarem a
comunidade negra através das coisas que aprenderam, quando entrou para a
Casa Branca deixou subitamente de partilhar os seus pontos de vista no
que toca a questões raciais. Entretanto, um estudo às suas raízes
familiares veio revelar que ela é a quadrineta de uma escrava da
Carolina do Sul que foi engravidada por um branco. Aos 51 anos, ainda é
nova e é difícil saber o que fará com os anos que lhe restam,
especialmente depois de abandonar a Casa Branca. Talvez o seu lugar na
História fique emoldurado, calado, mas nem por isso menos capaz de um
poderoso grito optimista, como o primeiro retrato oficial que tirou na
casa, debaixo de uma pintura de Thomas Jefferson. 'A sua negritude
tornou--se ainda mais expressiva em justaposição com a pintura do
terceiro presidente da nação, que tinha escravos e foi pai de pelo menos
seis crianças com uma das suas escravas', escreve Slevin, sublinhando a
força simbólica daquele retrato.